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Como a oncologia de precisão promove avanços no tratamento do câncer

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06/05/2020

 

Se o corpo humano fosse um castelo em guerra contra a invasão e disseminação de células cancerígenas, os tradicionais métodos de combate — a quimioterapia, a radioterapia ou a cirurgia — seriam o equivalente a uma bazuca: até conseguem eliminá-las, mas podem provocar danos irreparáveis à estrutura do castelo. Como se não bastasse, é difícil saber exatamente por onde os invasores tentarão entrar para ganhar o controle do castelo — enquanto a mira está na porta, pode ter outra tropa prestes a entrar pela janela.

Mas, nos últimos anos, um novo campo de estudo da medicina começou a mudar este cenário. Na chamada oncologia de precisão, desenvolvida a partir dos anos 2000, saem as bazucas e entram os snipers. A ideia é saber exatamente quando, como e onde atacar o tumor para ter os melhores resultados com os menores efeitos colaterais. Uma das estratégias mais promissoras é a das terapias genéticas. Como o nome sugere, elas miram nas mutações genéticas das células defeituosas para eliminá-las.

Para entender como os novos tratamentos funcionam, é preciso compreender o que é e como surgem os tumores malignos, ou câncer, termo que engloba um conjunto de mais de 100 doenças causadas pelo crescimento desordenado das células. Em nosso corpo, existem 10 trilhões delas, e no DNA de cada uma existem instruções de como devem crescer e se multiplicar.

Às vezes, pequenas mutações podem alterar essas ordens — em geral, o sistema imunológico consegue identificar as falhas e eliminá-las antes que se espalhem. Mas isso nem sempre acontece: nossa imunidade tem mecanismos para evitar reações exageradas que podem ser prejudiciais ao organismo. E o câncer se aproveita justamente disso, seja se escondendo dessas defesas, seja usando táticas para enganá-las e inibir um ataque. Assim, as células defeituosas se proliferam e replicam as informações erradas, crescendo desenfreadamente e invadindo os tecidos e órgãos.

Match perfeito para a destruição

A primeira geração dessas novas estratégias de combate ao câncer são as terapias-alvo. Trata-se de um ataque às moléculas essenciais para o funcionamento das células cancerígenas, freando sua expansão. A ideia é antiga: o bacteriologista alemão Paul Ehrlich, vencedor do Prêmio Nobel de Medicina em 1908, já havia sugerido naquela época a possibilidade de desenvolver um remédio que combatesse os mecanismos específicos de doenças infecciosas. Mas foi só a partir de 2000 que tais remédios se tornaram realidade — não para infecções, e sim na luta contra contra o câncer.

A ideia é atacar células específicas de tumores específicos. Por exemplo: existem diferentes tipos de mutações para câncer de mama, e a terapia foca em uma delas. Portanto, não serve para todos os pacientes. Por serem extremamente precisos, têm taxa de resposta alta e menos efeitos colaterais. O problema é que o tratamento depende de um “match” perfeito, e nem todo tumor tem o alvo ou a mutação específica para as quais os medicamentos funcionam.

Atualmente, existem terapias-alvo disponíveis para câncer de pulmão, tireóide, rim, pele, melanoma, sarcoma, fígado, cólon, reto, ovário, mama e leucemias e linfomas. No entanto, elas costumam ser mais recomendadas somente para esses três últimos tipos de câncer.

Quando o corpo é o melhor remédio

Um passo à frente da terapia-alvo, a imunoterapia usa nossas próprias células de defesa contra o câncer. É mais um método que, embora tenha evoluído só nos últimos cinco anos, vem sendo testado há pelo menos 100 anos.

Tudo começou no século 19, com o cirurgião americano William Coley. Ao observar que uma vítima de câncer se curou após uma grave infecção, ele desenvolveu a teoria de que, se super ativado, nosso sistema imunológico seria capaz de acabar com um tumor. O cirurgião chegou a fazer experimentos infectando propositalmente pacientes com câncer, sem sucesso.

Os anos passaram e os cientistas descobriram que a teoria de Coley não estava incorreta. Os maiores responsáveis por provar isso foram os imunologistas James P Allison, dos Estados Unidos, e Tasuku Honjo, do Japão, que venceram o Prêmio Nobel de Medicina em 2018 pela descoberta. Eles mostraram que é possível, sim, estimular o sistema imunológico para combater as células cancerígenas: basta bloquear o mecanismo utilizado por elas para enganar nossas defesas. Ele consiste na liberação de proteínas que se encaixam em receptores dos linfócitos T — o “cérebro dinâmico” do sistema imunológico e o responsável por reconhecer a célula danificada e emitir a ordem para que outras células a destruam — e bloqueiam o sinal de alerta.

Os remédios imunoterápicos atuam impedindo a liberação dessas proteínas ou obstruindo os receptores dos linfócitos T. Sem serem enganados, eles comandam o ataque. Apesar de também provocar efeitos colaterais, o método é menos agressivo e mais eficaz que os tratamentos tradicionais.

Super-heróis feitos sob medida

Dentro da imunoterapia, um método ainda mais moderno e inovador tem sido desenvolvido. O tratamento com as chamadas células CAR-T consiste na modificação genética em laboratório dos linfócitos T para que desenvolvam um receptor capaz de identificar as células tumorais. “Eles se transformam em super-heróis direcionados para o câncer”, exemplifica o oncologista Bernardo Garicochea, membro do Comitê de Oncogenômica da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC). Os linfócitos são então reinseridos no corpo do paciente para realizarem a missão.

Parece coisa de ficção científica, mas o tratamento já foi aprovado nos Estados Unidos para casos raros de câncer de sangue (linfomas e leucemia) resistentes aos métodos tradicionais. No fim de 2019, foi testado pela primeira vez na América Latina por pesquisadores brasileiros.

Feito na modalidade de tratamento compassivo, que permite o uso de terapias não aprovadas no país em casos graves sem outras opções disponíveis, o teste ampliou a expectativa de sobrevida de um paciente que sofria com linfoma não Hodgkin. Além disso, reduziu os sintomas clínicos e a necessidade de remédios para dor. E o método desenvolvido por aqui custa bem menos que o oferecido nos Estados Unidos — R$ 150 mil, em vez dos US$ 400 mil (mais de R$ 2 milhões) necessários por lá.

Entusiasmo cauteloso

O alto custo não é o único desafio para esses novos tipos de terapias, nem o mais difícil de se contornar: no Brasil, por exemplo, fica levemente acima do valor de um transplante de medula óssea (R$ 110 mil é o repasse do SUS). Há também a expectativa de que os preços diminuam à medida em que os tratamentos se tornem disponíveis para mais gente.

A parte mais complicada é identificar as mutações ou particularidades que possam ser usadas como alvos, na visão de especialistas. “São muitos passos até desvendar o quebra-cabeça de um tumor”, diz o oncologista Ramon Andrade de Mello, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e consultor científico da Escola Europeia de Oncologia.

Mello é o responsável por uma pesquisa para sequenciar o código genético dos tumores de pacientes não fumantes com câncer de pulmão. “Nós queremos identificar quais os genes mais responsáveis pelo câncer e, a partir disso, desenvolver medicamentos que inibam esses genes”, explica de Mello, que acredita que a pesquisa deve durar dez anos. O desafio é que os tumores no pulmão de pessoas que não fumam são minoria: entre os 1,5 milhão de casos de câncer de pulmão diagnosticados a cada ano no mundo apenas 15% se dão entre não fumantes.

Na explicação de Garicochea, para identificar todos os possíveis alvos, seria necessário um atlas do genoma humano e dos tumores para compará-los, e entender o que está errado. Uma tentativa neste sentido foi divulgada em fevereiro deste ano, na revista Nature. Durante uma década, 1,3 mil pesquisadores do consórcio Pan-Cancer Analysis of Whole Genomes, mais conhecido como Pan-Cancer, analisaram 2,6 mil tumores de 38 tipos de câncer. Eles mapearam o genoma destes tumores e apontaram quais falhas no DNA levaram ao desenvolvimento da doença.

Entre as descobertas que mais chamaram a atenção são as diferenças entre o câncer de um paciente e outro, e a interrelação entre os diferentes genes. “Existe comunicação cruzada dentro do próprio tumor, a chamada cross-talk, então às vezes quando você descobre como consertar uma pecinha [do quebra-cabeça], o danado vem e desmancha outra para atrapalhar”, diz o oncologista da Unifesp.

Esses são alguns dos motivos pelos quais os cientistas são receosos em anunciar as terapias como potenciais curas para o câncer. “Elas não são a salvação da pátria, são mais um passo dessa caminhada, vão falhar em muitos pacientes, vão curar algumas vidas, nós vamos aprender a melhorá-las e aprender muitas coisas com elas”, diz Garicochea.

Mesmo assim, elas entusiasmam não só pelo potencial de tratamento, mas por também incentivarem avanço nas pesquisas que trazem descobertas importantes também para a prevenção. O especialista da Unifesp não esconde o otimismo: “estamos em uma nova era, o câncer está cada vez mais se tornando uma doença crônica quando bem abordado. Em 2040 talvez o câncer seja tratado como hoje é o diabetes.”

Fonte: Revista Galileu

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