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26/02/2020
Ricardo José Giordano - Professor associado do Departamento de Bioquímica, Instituto de Química da Universidade de São Paulo. Doutor em Bioquímica e Biologia Molecular. Pós-doutorado MD Anderson Cancer Center (Texas, EUA).
Para que um medicamento combata de forma eficiente uma doença, é necessário um bom alvo terapêutico. Ou seja, o medicamento precisa inibir algum processo biológico essencial para a doença em questão. Tomemos as infecções bacterianas e o câncer como modelo. No primeiro caso, utilizamos antibióticos para o tratamento. No segundo, quimioterápicos e outras alternativas (ver mais abaixo). Por que comparar estas duas doenças? O que elas têm em comum? Ambas são processos proliferativos: no primeiro, temos bactérias invasoras crescendo dentro do nosso corpo. Por sua vez, o câncer não deixa de ser uma infecção: trata-se de uma população de células alteradas (com mutações no seu DNA) que cresce e se multiplica sem controle. Nos dois casos, queremos matar e eliminar as células indesejadas. Os antibióticos agem matando as células das bactérias invasoras: as células microbianas e humanas são muito diferentes, separadas por milhões de anos de evolução; estas diferenças moleculares permitiram que cientistas identificassem substâncias que agem e matam apenas as células bacterianas: são os antibióticos.
No caso do câncer, porém, o processo é bem mais complicado porque as células cancerígenas são muito parecidas com as demais células (normais) do nosso corpo. Como então matar apenas elas? Um dos pilares da terapia oncológica é justamente a característica mais importante do câncer: o crescimento exacerbado das células tumorais. Num organismo adulto, 99% das nossas células estão num estado que chamamos de quiescente: ou seja, elas não estão se dividindo, mas apenas mantendo seus processos básicos. Por isso, boa parte dos medicamentos quimioterápicos age em processos associados com a divisão celular. Ou seja, matam qualquer célula humana que estiver em processo de divisão. Desta forma, os agentes quimioterápicos, embora matem “preferencialmente” as células cancerígenas, também matam algumas células normais que estão em divisão (daí os efeitos colaterais da quimioterapia: perda do cabelo, as unhas param de crescer etc.); são as poucas células do nosso organismo que se dividem constantemente e são afetadas pelo tratamento (além do tumor, é claro).
Durante décadas, o tratamento do câncer se limitou a três modalidades: remoção cirúrgica do tumor, radioterapia e quimioterapia. Todas elas, ainda são amplamente utilizadas, mas nem sempre são capazes de prevenir o retorno da doença, principalmente, se o câncer for descoberto tardiamente, num estágio mais adiantado. Os avanços recentes da ciência e da biotecnologia, aliados a um maior conhecimento da biologia tumoral, permitiram o desenvolvimento de novas terapias câncer-específicas. Entre as descobertas recentes, as mais instigantes para o tratamento do câncer metastático (o que se espalhou pelo corpo) são aquelas denominadas de imunoterapia.
Desde o final do século dezenove, médicos têm relatado casos de regressão espontânea do câncer, muitos deles associados às infecções bacterianas. O Dr. William Coley é considerado como o pai da imunoterapia. Após observar diversos casos de remissão espontânea do câncer de paciente que desenvolveram erisipela (uma forma de infecção microbiana cutânea), em 1891 ele criou uma linha de tratamento do câncer utilizando uma mistura contendo bactérias vivas e atenuadas (também chamada de toxina de Coley). Apesar dos resultados promissores reportados por ele, o tratamento acabou sendo abandonado, devido sobretudo à incompreensão de seu mecanismo, sem mencionar as complicações associadas ao fato de o tratamento envolver a infecção do paciente com bactérias vivas. Mas o conceito permaneceu e, hoje, entendemos melhor por que alguns pacientes se curam do câncer nestas situações. É que temos um sistema bastante eficiente para combater “organismos invasores”: o nosso sistema imunológico, que é capaz de eliminar infecções por microrganismos e vírus, e também capaz de combater o câncer... Bom, nem sempre.
Acontece que as células tumorais se utilizam de diversos mecanismos para “desligar” o sistema imune, inibindo seu ataque. É até irônico, porque quando olhamos no microscópio, os tumores estão cheios de linfócitos, as células do sistema imune que combatem infecções. Entretanto o câncer se aproveita destes inibidores para impedir o ataque dos linfócitos. É como um sistema de camuflagem, tornando o câncer invisível para o sistema imune. Por isso que nos tratamentos pioneiros pelo Dr. William Coley, ao estimular o sistema imune dos pacientes com câncer utilizando bactérias vivas, esta camuflagem era removida, fazendo com que o sistema imune passasse a atacar o tumor também. Atualmente, alguns dos novos medicamentos têm o mesmo efeito, de retirar este manto de invisibilidade, permitindo que o sistema imune enxergue as células tumorais e as destrua.
Mas nem tudo é perfeito. Tais medicamentos ainda não funcionam para todos os tipos de tumores, nem para todos os pacientes. E como eles desligam alguns dos mecanismos que nos protegem contra o auto ataque do sistema imune, estes tratamentos também têm efeitos colaterais severos: ao retirar mecanismos inibidores do sistema imune, ele também pode atacar células saudáveis do nosso corpo. Ainda não entendemos muito bem todos os mecanismos de inibição do sistema imune, nem quais deles são utilizados por cada tipo de tumor. Neste campo, os imunologistas e oncologistas ainda estão aprendendo como utilizar os novos medicamentos de forma eficaz e mais segura para os pacientes, uma vez que o potencial terapêutico destes medicamentos é muito grande.
Paralelamente, novas tecnologias vêm sendo desenvolvidas para minimizar referidos efeitos colaterais. São plataformas terapêuticas muito mais sofisticadas. Uma delas, o sistema CAR-T, que foi notícia entre nós no ano passado por ter sido implementado no Brasil pela primeira vez. Esta terapia, valendo-se da biotecnologia para "ensinar" as células do nosso sistema imune a reconhecer um tumor, pode ser mais específica e mais segura, pois não remove os mecanismos de defesa do sistema imune, mas sim, leva-o a enxergar o tumor. Infelizmente, esta tecnologia ainda não está disponível para todos os tipos tumorais e é muito cara.
Isto nos traz a outro ponto importante desta conversa. As novas tecnologias terapêuticas e diagnósticas necessitam, cada vez mais, de profissionais altamente qualificados. Além de bons médicos, para que estas terapias sejam implantadas nos sistemas de saúde público e privado, são necessários outros bons profissionais: farmacêuticos, biomédicos e enfermeiros de alta qualificação técnica para auxiliar a equipe médica. Não são terapias em que o paciente toma um comprimido duas vezes ao dia antes das refeições. Estamos falando de terapias gênicas, onde as células do sistema imune são modificadas em laboratório e reimplantadas no paciente, que deverá depois ser acompanhado e monitorado por várias semanas ou meses, até que o tratamento seja concluído.
Sem dúvida a ciência há de nos presentear com novas descobertas e, oxalá, com a cura do câncer. Mas o efetivo aproveitamento dessas conquistas pressupõe que a nova geração de profissionais esteja capacitada a usá-las, o que será possível somente se a sociedade e o governo se mobilizarem, não poupando empenho e sobretudo investimentos. Infelizmente, no caso brasileiro, a drástica redução governamental das verbas dedicadas à educação, ciência e tecnologia deixa-nos preocupados e incertos a esse respeito. É isso!
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